quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Alimentos Gravídicos

 Publicado no site: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=467

19/11/2008 | Autor: Leandro Soares Lomeu
 
 
Entrou em vigor no dia 06 de novembro de 2008, uma nova lei de alimentos, a Lei 11.804/08, que busca disciplinar o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido, objetivando preencher uma triste lacuna ora existente no Direito de Família contemporâneo.  Os alimentos gravídicos pode ser compreendido como aqueles devidos ao nascituro, e, percebidos pela gestante, ao longo da gravidez, sintetizando, tais alimentos abrangem os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes. Assim, entende-se que o rol não é exaustivo, pois pode o juiz pode considerar outras despesas pertinentes.

A Lei de Alimentos (Lei 5.478/68) consistia um óbice à concessão de alimentos ao nascituro, haja vista a exigência, nela contida, no seu artigo 2º, da comprovação do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar. Ainda que inegável a responsabilidade parental desde a concepção, o silêncio do legislador sempre gerou dificuldade para a concessão de alimentos ao nascituro.

A dificuldade gerada pela comprovação do vínculo de parentesco de outrora já não encontrava-se engessada pela Justiça que teve a oportunidade de reconhecer, em casos ímpares, a obrigação alimentar antes do nascimento, garantindo assim os direitos do nascituro e da gestante, consagrando a teoria concepcionista do Código Civil e o princípio da dignidade da pessoa humana. Sem dúvidas, houve, mais uma vez, o reconhecimento expresso do alcance dos direitos da personalidade ao nascituro.


Nesses moldes já afirmava Silvio de Salvo Venosa  sobre a legitimidade para a propositura da ação investigatória:

"São legitimados ativamente para essa ação o investigante, geralmente menor, e o Ministério Público. O nascituro também pode demandar a paternidade, como autoriza o art. 1.609, parágrafo único (art. 26 do Estatuto da Criança e do Adolescente, repetindo disposição semelhante do parágrafo único do art. 357 do Código Civil de 1.916)."[1]

Ainda especificamente a respeito dos alimentos ao nascituro, vale trazer à baila valioso ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira:

"Se a lei põe a salvo os direitos do nascituro desde a concepção, é de se considerar que o seu principal direito consiste no direito à própria vida e estar seria comprometida se à mão necessitada fossem recusados os recursos primários à sobrevivência do ente em formação em seu ventre.

Neste sentido Pontes de Miranda comenta que 'a obrigação alimentar pode começar antes de nascer, pois existem despesas que tecnicamente se destinam à proteção do concebido e o direito seria inferior se acaso se recusasse atendimento a tais relações inter-humanas, solidamente fundadas em exigências da pediatria'.

Silmara J. A. Chinelato e Almeida reconhece que são devidos ao nascituro os alimentos em sentido lato - alimentos civis - pra que possa nutrir-se e desenvolver-se com normalidade, objetivando o nascimento com vida.
(...) Têm os nossos Tribunais reconhecido a legitimidade processual do nascituro, representado pela mãe, tendo decisão pioneira da Primeira Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, datada de 14.09.1993 (Ap. Cível n. 193648-1), atribuído legitimidade 'ad causam' ao nascituro, representado pela mãe gestante, para propor ação de investigação de paternidade com pedido de alimentos. Concluiu o relator - Des. Renan Lotufo - reportando-se à decisão pioneira no mesmo sentido do Tribunal do Rio Grande do Sul (RJTJRS 104/418) que 'ao nascituro assiste, no plano do Direito Processual, capacidade para ser parte como autor ou réu. Representado o nascituro, pode a mãe propor ação de investigatória e o nascimento com vida investe o infante na titularidade da pretensão de direito material, até então uma expectativa resguardada'.

Na hipótese de reconhecimento anterior ao nascimento autorizada pelo parágrafo único do art. 1.609 do Código Civil, não se pode excluir a legitimidade do nascituro para a ação de alimentos."[2]

            Já enfatizava o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acerca dos alimentos em favor de nascituro, ao decidir que:

"Havendo indícios da paternidade, não negando o agravante contatos sexuais à época da concepção, impositiva a manutenção dos alimentos à mãe no montante de meio salário mínimo para suprir suas necessidades e também as do infante que acaba de nascer. Não afasta tal direito o ingresso da ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos."[3]

Diante de tais ensinamentos, dúvidas não restavam de que a tendência apontada pela doutrina e jurisprudência[4] era é o reconhecimento à mãe gestante da legitimidade para a propositura de ações em benefício do nascituro. Fato jurídico que foi socorrido e se fez consagrado pela nova legislação alimentícia através da Lei 11.804/08.
Abrilhanta a Lei de Alimentos Gravídicos a desejada proteção da pessoa humana e dos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna, correspondendo-os ao sistema do direito privado, gerando a via tão desejada do direito civil-constitucional, considerando assim um grande avanço da legislação pátria.

A nova legislação entra em contato com a realidade social facilitando a apreciação dos requisitos para a concessão dos alimentos ao nascituro, devendo a requerente convencer o juiz da existência de indícios da paternidade, desta forma, este fixará os alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré. 

Note-se que os critérios para a fixação do valor dos alimentos gravídicos são os mesmos hoje previstos para a concessão dos alimentos estabelecidos no art. 1694 do Código Civil: a necessidade da gestante, a possibilidade do réu - suposto pai -, e a proporcionalidade como eixo de equilíbrio entre tais critérios.

Outro aspecto interessante da nova lei é o período de condenação ao pagamento dos alimentos gravídicos que se restringe a duração da gravidez, e com o nascimento, com vida, do nascituro, eles se convertem em pensão alimentícia. Leva-nos, em ordem contrária, como nos indica a boa justiça, a afirmar que caso haja a interrupção da gestação, tal é o fato de um aborto espontâneo, por exemplo, extingue-se de pleno direito os alimentos de forma automática. Isso porque não abrangem os alimentos gravídicos o disposto na recente Súmula 358 do STJ, que dispõe sobre "o cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos".

Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão, de acordo com o parágrafo único do art. 6º, da Lei 11.804/08. Nessas linhas, nada impede, contudo, que o juiz estabeleça um valor para a gestante, até o nascimento e atendendo ao critério da proporcionalidade, fixe alimentos para o filho, a partir do seu nascimento.

Quanto ao foro competente certo é o do domicílio do alimentado, neste caso a gestante. O Projeto de Lei que originou a Lei de Alimentos Gravídicos previa a competência do domicílio do réu, mostrava-se em desacordo com a sistemática adotada, que de boa ordem foi vetado.

Outro ponto de suma importância e que causou controvérsias, encontrava-se no vetado artigo 9º, que determinava a incidência dos alimentos desde a citação. É direta a possibilidade de se afirmar que se assim fosse determinado, ou seja, que os alimentos gravídicos somente fossem devidos apenas depois da citação do réu, provocaria manobras no sentido de se evitar a concretização do ato, objetivando escapar do oficial de justiça. Talvez fosse possível encontrar o suposto pai somente após o nascimento do filho, perdendo assim a finalidade da lei. Colidia o artigo 9º também com a redação da Lei de Alimentos que determina ao juiz despachar a inicial fixando, desde logo, os alimentos provisórios. Dessa forma, a Lei 11.804/08 adotou a posição consagrada na doutrina e na jurisprudência, e também expressa legalmente, ou seja, o juiz deve fixar os alimentos ao despachar a petição inicial.

Vislumbra-se através da Lei de Alimentos Gravídicos a busca incessante pela dignidade da pessoa humana, pessoa esta considerada desde a sua concepção. Alcança a nova legislação alimentícia as características atinentes a  repersonalização do Direito Civil, a conseqüente despatrimonialização do Direito de Família e a responsabilização efetiva da parentalidade.

Como afirma Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em artigo que analisou o Projeto de Lei que deu origem a atual Lei de Alimentos Gravídicos: "apesar das imprecisões, dúvidas e equívocos, os alimentos gravídicos vêm referendar a moderna concepção das relações parentais que, cada vez com um colorido mais intenso, busca resgatar a responsabilidade paterna"[5].

Ademais a Constituição Brasileira de 1988 prioriza a necessidade da realização da personalidade dos membros familiares, ou seja, a família-função, através do princípio da solidariedade familiar, com amparo no art. 3º, inciso I da CF. Assim como é dever do Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, o que pôde ser alcançado, salvo as intempéries legislativas, com a sanção da Lei 11.804/08, elencando a pessoa humana como centro da proteção jurídica, ao invés do individualismo e do patrimonialismo do século passado.

Em conclusão, invoca-se palavras de Jurandir Freire Costa, ao considera que "para que possamos restituir à família a legitima dignidade que, historicamente, lhe foi outorgada, é preciso colocar em perspectiva seus impasses, procurando reforçar o que ela tem de melhor e vencer a inércia do que ela tem de pior"[6]. Espera-se que Lei de Alimentos Gravídicos vença os impasses outrora vividos diante da lacuna que existia em nosso ordenamento jurídico, e reforce as garantias e o melhor interesse do menor e da gestante.

REFERÊNCIAS

COSTA, Jurandir Freire. Família e Dignidade. In: Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo : IOB Thomson, 2006.

DIAS, Maria Berenice. Alimentos Gravídicos? Disponível em: http://www.mariaberenice.com. br. Acesso em 08 de novembro de 2008.

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Direito de Família. vol. 5. Rio de Janeiro : Forense, 2007.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direito de Família. vol. V. 16ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2006, p. 517-519.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil - Direito de Família. 4ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 317.


ANEXO

LEI Nº 11.804, DE  5 DE NOVEMBRO DE 2008.


Disciplina o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido e dá outras providências.

        O  PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
        Art. 1o  Esta Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido.
        Art. 2o  Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes.
        Parágrafo único.  Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de ambos.
        Art. 3º  (VETADO)
        Art. 4º  (VETADO)
        Art. 5º  (VETADO)
        Art. 6o  Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré.
        Parágrafo único.  Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.
        Art. 7o  O réu será citado para apresentar resposta em 5 (cinco) dias.
        Art. 8º  (VETADO)
        Art. 9º  (VETADO)
        Art. 10º  (VETADO)
        Art. 11.  Aplicam-se supletivamente nos processos regulados por esta Lei as disposições das Leis nos 5.478, de 25 de julho de 1968, e 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.
        Art. 12.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

        Brasília,  5  de  novembro   de 2008; 187o da Independência e 120o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Tarso Genro
José Antonio Dias Toffoli
Dilma Rousseff




[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil - Direito de Família. 4ª ed. São Paulo : Atlas, 2004, p. 317.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direito de Família. vol. V. 16ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2006, p. 517-519.
[3] TJRS, Agravo de instrumento n. 70018406652, Rel. Des. Maria Berenice Dias, D.J. 16.04.2007.
[4] "NASCITURO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. A genitora, como representante do nascituro, tem legitimidade para propor ação investigatória de paternidade. Apelo provido". (TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70000134635, Rel. Des. Maria Berenice Dias, j. 17.11.99).
[5] DIAS, Maria Berenice. Alimentos Gravídicos? Disponível em: http://www.mariaberenice.com. br. Acesso em 08 de novembro de 2008.
[6] COSTA, Jurandir Freire. Família e Dignidade. In: Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo : IOB Thomson, 2006, p. 26.

 
Leandro Soares Lomeu é membro do IBDFAM, mestrando em Direito na área de Relações Privadas e Constituição pela Faculdade de Direito de Campos (FDC/RJ), Professor de Direito Civil na Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE).

sábado, 30 de julho de 2011

"Uma aula de Brasil"

 por Gilmar Mendes artigo publicado no jornal O Globo



Comecemos pelo óbvio: preso é gente. E gente precisa de alimento, educação e trabalho.
No Brasil, porém, a realidade às vezes consegue revogar até axiomas. Aqui os presídios não são casas correcionais socializadoras, mas depósitos de seres humanos, que, lá chegando, transformamse em coisas - pelo menos para a maioria - e como tal são tratados.
É o que vem sendo escancarado ao país desde que o Conselho Nacional de Justiça pôs em execução o Programa dos Mutirões Carcerários.
As deficiências são de toda ordem: superpopulação, lixo acumulado, infestação por ratos. Faltam técnicos, quando não estrutura mínima de funcionamento nas varas e, enquanto escasseiam defensores, sobram processos aguardando instrução, num quadro em que o excesso de prazo é a regra.
Nos mutirões constatou-se déficit de 167 mil vagas no sistema prisional - a custodiar mais de 473 mil pessoas - que cresce em média 7,11% ao ano. Contudo, mesmo diante dos milhares de mandados de prisão não cumpridos, o investimento na construção de presídios não chega a 3% dos recursos necessários à criação dessas vagas.
A ineficiência sistêmica é mais flagrante no paradoxo de que milhares de réus encontram-se soltos sem perspectiva de julgamento enquanto tantos se acham ilegalmente encarcerados, alguns cumprindo provisoriamente penas superiores à do delito que cometeram.
É para reverter tais ignomínias que o CNJ trabalha.
Examinados mais de 111 mil processos em um ano e meio, foram concedidos cerca de 34 mil benefícios legalmente previstos, entre os quais mais de 20,7 mil liberdades. Ou seja, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reouveram o direito à liberdade. Quanto à racionalização dos gastos, os mutirões resultaram na realocação de vagas equivalentes à capacidade de 40 presídios médios.
A Lei de Execuções Penais determina que os condenados trabalhem ou tenham acesso ao ensino fundamental.
Todavia, pesquisas revelam que, em 2008, a média de presos sem trabalho é de 76%, e só 17,3% estudam.
Entre os detidos que trabalham, a chance de reincidência cai a 48%. Para os que estudam, reduz-se a 39%.
Ora, o alto índice de reincidência demonstra que o sistema prisional não atende ao principal objetivo - recuperar, reabilitando ao convívio social, aqueles que delinquiram.
Os explosivos indicadores da violência urbana, o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança evidenciam que o problema se agrava e precisa ser resolvido com medidas pragmáticas, a exemplo das parcerias que o CNJ vem fazendo com órgãos públicos e com a comunidade para viabilizar a capacitação profissional necessária à reinserção dos presos na sociedade, além do acesso a serviços básicos, como a previdência e assistência social.
Dentre as ações do CNJ direcionadas à reinserção de egressos, destacamse projetos como o Começar de Novo, Advocacia Voluntária, Recambiamento de Presos e a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, legados estruturantes dos mutirões carcerários, com frutos no plano da justiça criminal. Não por outro motivo, 2010 foi eleito pelo Judiciário como o ano da justiça criminal.
Ao ministrar essa aula de Brasil, os mutirões mostraram que apenas com esforço conjunto e programado se superam desafios de tal porte. Daí a elaboração da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública, alicerçada na colaboração entre o Judiciário, o Executivo e o Ministério Público, em explícito reconhecimento de que, não cabendo a transferência de culpas, cumpre abraçar a corresponsabilidade, com planejamento e atuação articulados.
Por ação ou omissão, o tirano nessa história não há de ser mais o Estado brasileiro, cujo crescimento econômico tem despertado admiração.
Passa da hora de o país alçar ao ranking da responsabilidade social, garantindo proteção aos direitos fundamentais, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis da população.
Gilmar Mendes
Presidente do STF e do CNJ
Artigo publicado no jornal O Globo em 16/04/2010

quinta-feira, 14 de julho de 2011

FOI DECLARADA NULA A SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU EM SEDE DE AÇÃO RESCISÓRIA POR VÍCIO DE CITAÇÃO, PERANTE A SEÇÃO ÚNICA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ


Ementa
PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. NULIDADE DA DECISÃO RESCINDENDA POR VÍCIO DE CITAÇÃO. INOCORRÊNCIA. DECRETAÇÃO DE REVELIA. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL. NECESSIDADE. CITAÇÃO CONSIDERADA  A PARTIR DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO.  1) Considera-se citado por hora certa o réu se comprovado está,  por  certidão circunstanciada, que o  Oficial de Justiça atendeu o  disposto nos art. 227, 228 e 229 do Código de Processo Civil. 2) Consoante Súmula 196/STJ e art. 9º, II, do CPC, é nula sentença, na qual houve decretação da revelia, sem  a nomeação de curador especial ao devedor citado por edital ou por hora certa. 3) Todavia, o ajuizamenteo de Ação Recisória, é prova cabal que autor já conhece o lhe era demandado  de sorte que já se deve considerá-lo  citado a partir da publicação do Acórdão, sem necssidade de nomeação de curador especiall; 4) Ação Rescisória conhecida e julgada procedente. 
 
Inteiro Teor
  
RELATÓRIO


GILVAN PINHEIRO BORGES, por intermédio de advogado devidamente habilitado, com base no art. 485, V, do Código de Processo Civil e arts. 221 e seguintes do Regimento Interno desta Corte, propôs AÇÃO RESCISÓRIA contra a sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da 1.ª Vara Cível e de Fazenda Pública da Comarca de Macapá, de natureza condenatória nos autos da AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS n.º 0001165-12.2009.8.03.0001, movida por JOÃO CÂNCIO PICANÇO E SILVA, que julgou procedente os pedidos contidos na inicial para condenar o réu Gilvan Pinheiro Borges, ao pagamento da importância de R$ 46.500,00 (quarenta e seis mil e quinhentos reais), a título de compensação pelos danos morais sofridos em razão das notícias ofensivas à sua honra, acrescidos de juros moratórios de 1 % (um por cento) ao mês a partir da data da citação, bem como de atualização monetária pelo INPC.


Daqui em diante, adoto o relatório exarado às fls. 89/93, nos seguintes termos:


Na petição inicial, o autor relatou que a Ação contra ele proposta teria sido intentada em razão de violado a honra do réu com a publicação, no periódico Diário do Amapá, de artigo denominado URUCUBACA.


Aduziu que a sentença prolatada deverá ser rescindida, dada a violação ao princípio do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, por não ter considerado o seu correto endereço residencial quando de sua citação aos autos.


Asseverou que o oficial de justiça deveria citá-lo nos autos do processo indenizatório, compareceu a emissora de rádio localizada na Comarca de Santana, onde foi informado que o autor é Senador da República e se encontrava em viagem no interior do Estado.


Acrescenta que o endereço informado pelo réu para a sua citação não é da emissora de rádio onde se realizou a diligencia, na Comarca de Santana.


Inconformado em não localizar o autor e suspeitando que o mesmo estaria se ocultando, o oficial de justiça efetuou a sua citação por hora certa, devolvendo o mandado de citação aos autos, reputando-o cumprido.


Sustenta o autor que, dando cumprimento ao art. 229 do Código de Processo Civil, foi encaminhada carta para a emissora de rádio, sendo a mesma recebida pela Sra. CÍCERA BORGES, desconsiderando-se, novamente o endereço indicado pelo réu em sua petição inicial.


Diante de tais fatos, foi decretada a revelia do autor no processo de indenização por danos morais, sendo julgado antecipadamente o mérito, restando o mesmo condenado nos termos acima expostos.


Destarte, alega o autor que o oficial de justiça sabia de sua condição de Senador da República e que seu endereço, como tal, está situado na cidade de Brasília/DF, onde se encontra no exercício de seu mandado parlamentar, devendo ter sido citado nesta Comarca, através de Carta Precatória, sendo nula a sua citação realizada nos autos do processo de indenização por indenização por danos morais movido pelo réu.


Aduz que além do seu correto endereço residencial não ter sido considerado quando da realização de sua citação, o oficial de justiça não cumpriu com as exigências dispostas no art. 227 do Código de Processo Civil para efetuar a sua citação por hora certa e, ainda, que não lhe foi nomeado curador especial aos autos, como preceitua o art. 9 do Estatuto de Ritos.



Tais fundamentos representariam o fumus boni iuris e o periculum in mora residiria no fato de a sentença rescindenda se encontrar em fase de execução, podendo ser determinada o bloqueio de valores em conta corrente e a constrição judicial de seus bens.


Por tudo isso, pediu a concessão dos efeitos da tutela antecipada para que seja suspensa a eficácia executiva da sentença impugnada, até decisão final desta Rescisória. E no mérito, requereu a rescisão da sentença de primeiro grau, declarando-se a nulidade de todos os atos praticados desde a citação, inclusive.


Sustenta o autor que tal decisão que se busca rescindir violou o art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal, que exige aos litigantes o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.


Informa também que a citação do autor é inválida, porque sua residência e domicílio são em Brasília/DF, haja vista que é Senador da República, e o endereço constante na inicial é de dona Cícera Pinheiro Borges, mãe do autor.


Aduz ser a citação formal a ser realizado na pessoa do réu, onde a lei é taxativa em prever as exceções, e não há nenhuma menção legal sugerindo que possa ser feita na pessoa de um parente qualquer, como se verifica no comando do art. 215 do CPC.


Argumenta, ao final, que não lhe foi nomeado curador especial, nos termos do art. 9º, do CPC.


Acrescento que esta Relatoria concedeu o pedido de antecipação de tutela pleiteado, em caráter incidental, por entender presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, determinando assim a suspensão dos efeitos executivos da decisão rescindenda até o julgamento definitivo desta ação rescisória.


Após a citação, o requerido JOÃO CÂNCIO PICANÇO E SILVA, ofertou contestação (fls. 101/116), sustentando, preliminarmente, a inadequação da via eleita, a inépcia da inicial, a carência de ação e a ausência de interesse processual. Em sede de mérito, pugnou pela validade da citação por hora certa.


O autor não apresentou réplica à contestação.


No despacho à fl. 132, determinei a abertura de prazo às partes para apresentarem suas alegações finais.


O requerido, em suas alegações finais, às fls. 135/150, reafirmou os mesmos argumentos da contestação.


Enquanto que o autor pugnou pela total procedência do pedido rescisório.


A Procuradoria-Geral de Justiça, em seu parecer (fls.153/158), opinou pela procedência do pedido para, declarar nulos todos os atos praticados, além de se ultimar nova e regular citação para que o feito seja processado em seu juízo de origem.


É o relatório.



VOTOS



ADMISSIBILIDADEO Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e Relator) - Meus ilustres Pares. Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço da Ação Rescisória.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Conheço.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Conheço.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Conheço.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Conheço.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Conheço.



DAS PRELIMINARES APRESENTADAS PELO REQUERIDO JOÃO CÂNDIDO PICANÇO E SILVA


Inadequação da via eleita



O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e Relator) - Eventual revelia da parte-ré não a impede de propor ação rescisória, na qual, contudo, não lhe será possível pretender demonstrar serem inverídicos os fatos alegados pela parte autora da precedente ação e tomados como verdadeiros pelo juiz por força do disposto no art. 319 do estatuto processual. Inviável, em outras palavras, utilizar a rescisória como sucedâneo da contestação. (STJ-RT 724/187).


Com esses fundamentos, rejeito esta preliminar.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Acompanho.



Inépcia da Inicial



O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e Relator) - No caso exposto verifica-se a coerência e lógica das alegações do autor da rescisória, na qual declinou a causa de pedir e formulou os pedidos decorrentes, com base no art. 485, V, do Código de Processo Civil, que trata da Ação Rescisória.


Portanto, rejeito esta preliminar.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Acompanho.



Carência de Ação



O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e Relator) - O requerido, JOÃO CÂNCIO PICANÇO E SILVA, pugnou pela extinção do feito alegando carência de ação por ausência dos pressupostos de existência do processo.


Nesse aspecto, cabe destacar que o pedido rescisório não se enquadra em nenhuma das hipóteses de ausência de pressupostos processuais, seja com relação à petição inicial, a jurisdição, a citação e a capacidade postulatória.


Razão pela qual rejeito também esta preliminar.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Acompanho.



Ausência de Interesse Processual



O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e Relator) - A alegação de que a presente ação rescisória carece de interesse processual porque foi ajuizada sem a observância da via adequada. Não há como ser acolhida esta preliminar, visto que a via eleita pelo autor da rescisória se enquadra nas hipóteses do art. 485, V, do Código de Processo Civil.


Assim, rejeito mais esta preliminar.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Acompanho.



MÉRITO



O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Presidente e relator) - Citação, segundo a doutrina, é ato mediante o qual se transmite ao demandado a ciência da propositura da demanda, tornando-o parte no processo. De forma que, antes de citado, o sujeito indicado pelo demandante como réu é apenas parte na demanda, mas não no processo. É tão importante que a lei a declara como sendo indispensável para a validade do processo (art. 214, caput, do CPC Ao referir-se por duas vezes à citação válida como fato determinante dos efeitos da litispendência sobre o demandado (arts. 219 e 263, a lei está a exigir a efetividade da citação e sua regularidade. Vale dizer, citação não feita ou inválida são a mesma coisa, ambas constituem um nada jurídico (DINAMARCO/Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros, 2009, pp. 53 e 522).


A efetividade da citação dá-se no momento em que o réu toma ciência, pela via adequada, da propositura do demando. Essa via adequada, dependendo do caso, pode ser a via postal, mandado, hora-certa ou edital, carta precatória, rogatória ou de ordem, observado os requisitos de lugar e de tempo.


Prevê o Código Civil que o domicílio natural é o lugar onde elo estabelece a sua residência com ânimo definitivo. E que é também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida (arts. 70 e 72). Nesse caso, sendo o réu Senador da República, o local a que se refere a lei seria o Senado Federal. Mas, por outro lado, dispõe o Código de Processo Civil, "que incumbe ao oficial de justiça procurar o réu, onde o encontrar e citá-lo (art. 226).


À época, pelo que se infere da Certidão do Oficial de Justiça, o réu se encontrava em seu Estado de origem, ficando isso evidente pelas palavras de seu irmão Geovani Borges, com quem o oficial de justiça Meirinho manteve contato. Confira- e o teor da Certidão:


"Certifico e dou fé que compareci nos endereços declinados no rosto do mandado sem encontrar o réu: GILVAM PI_HEIRO BORGES, nas seguintes datas e horários: 06/02/2009, às 09:00 horas; 20/02/2009, às 14:00 horas e 05/03/2009, às 11 :00 horas; então diligenciei na Rádio Santana FM, localizada no bairro Fonte Nova, e lá, falei com o irmão do réu, o Sr. Giovani Borges, dei-lhe ciência de tudo, ele me cedeu o número do telefone 91145893 e me disse que seu irmão estaria na rádio no dia seguinte, que eu ligasse; no dia marcado, efetuei a ligação e o Sr. Geovani me disse que seu irmão viajou para o interior do Estado, pois é Senador, mas me disse que assim que ele voltasse, ligaria-me (sic); marcamos então o dia 07/04/2009, precisamente às 10:00 horas, mas me restou infrutífero, o réu não compareceu. A atitude do réu me leva a suspeitar que ele está se ocultando propositadamente para não ser citado, valho-me dos arts. 227-228 e 229 do CPC para efetuar a citação por hora certa. Então, designei o dia 29/04/2009, às 16:00 horas. No dia e hora designada, retomei ali, e lá, fui informado que ele não estava, então li o conteúdo do mandado e da inicial, deixando a contrafé com o irmão do réu, o Sr. Geovani Borges, que aceitou, declarando o réu citado por hora certa, dando por concluída as diligenciais. O referido éverdade. Macapá, 30 de abril de 2009."



Por outro lado, nos termos do CPC, "Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.


Extrai-se da interpretação desse comando legal, e isso é aceito pela doutrina, que essa modalidade de citação ficta depende de três requisitos: a procura do réu em três oportunidades, cada uma delas certificadas quanto ao local, data, horário e outras circunstâncias; a suspeita de ocultação, que deve ser declarada e fundamentada; a comunicação à pessoa da família ou vizinho que no dia seguinte (exceto se esse for domingo ou feriado) a tal hora voltará para citar o réu (MACHADO, Antônio Cláudio da Costa/Código de Processo civil Interpretado, 8Q ed., Manolo, 2009, p. 243).


De uma ligeira leitura do teor da referida certidão, a conclusão que se chega é a de que a presença de tais requisitos restou evidenciada. Daí que, em que pese a argumentação do autor da rescisória, tenho que o mesmo foi citado validamente por hora certa, não merecendo a sentença ser rescindida por esse motivo.


É certo que o réu não se valeu somente desse fundamento para desconstituir a sentença rescindenda, também se fundou na violação literal do art. 92 do CPC, em virtude de não ter sido assistido por curador especial e, nesse ponto, assisti-lhe razão. Afinal, não há registro nos autos de que essa providência tenha sido efetivada. E, consoante o regramento expresso contido nesse dispositivo legal, o juiz dará curador especial ao revel citado por edital ou com hora certa (Inciso 11). No mesmo sentido é o entendimento do Superior Tribunal de justiça, o quanto segue:


"DIREITO CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. AÇÃO DE DESPEJO CUMULADA COM COBRANÇA DE ALUGUÉIS. CITAÇÃO POR HORA CERTA. REVELIA. OCORRÊNCIA. CURADOR ESPECIAL. NOMEAÇÃO. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Ao réu que, citado por edital ou por hora certa, permanecer revel, _será nomeado curador especial. Inteligência do ar!. 9Q, 11, do CPC. 2. Recurso especial conhecido e improvido." (REsp 924.268/RJ, ReI. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJE 16/03/2009)


Assim, no tocante a esse aspecto, assiste absoluta razão ao autor da rescisória e por conseguinte a sentença deve ser rescindida.


Por todo o exposto, julgo procedente a presente ação para rescindir a sentença de origem, anulando o processo a partir da citação por hora certa, agora sem a nomeação de curador especial, e dando por citado o autor da Ação Rescisória, e réu na Ação Originária, perante o Juízo Singular, a partir da publicação do Acórdão.


Condeno o réu ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios ao advogado do autor, os quais arbitro em R$ 100,00 (cem reais).


Restitua-se ao autor da rescisória, após o trânsito em julgado desta decisão, o depósito de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa feito por ele para instruir a inicial.


É como voto.



A Excelentíssima Senhora Juíza Convocada SUELI PINI (Revisora) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (1º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador RAIMUNDO VALES (2º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador AGOSTINO SILVÉRIO (3º Vogal) - Acompanho.



O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (4º Vogal) - Acompanho.



DECISÃO



A Secção Única do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, à unanimidade, rejeitou as preliminares argüidas, conheceu da Ação Rescisória, e, pelo mesmo quorum, julgou-a procedente para rescindir a sentença de origem, anulando o processo a partir da citação por hora certa, sem a nomeação de curador especial, e dando por citado o autor da Ação Rescisória, e réu na Ação Originária, perante o Juízo Singular, a partir da publicação do acórdão, nos termos do voto proferido pelo Relator.

A Câmara Única do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá condenou por unanimidade o Estado do Amapá e a empresa de ônibus a indenizar os familiares da vítima de sofreu acidente em via pública e posteriormente veiu a óbito num hospital público.

Ementa

CIVIL E PROCESSO CIVIL - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTE COLETIVO - ATROPELAMENTO DE CICLISTA - FRATURA EXPOSTA EM MEMBRO SUPERIOR ESQUERDO - LESÃO CORPORAL GRAVE - INOCORRÊNCIA DE CULPA DA VÍTIMA - INTERNAMENTO EM HOSPITAL DA REDE DE SAÚDE PÚBLICA ESTADUAL E MORTE POR SEPTICEMIA - DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA CONCESSIONÁRIA À REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. 1) Os concessionários de serviços de transportes coletivos respondem objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros, assegurado direito de regresso contra o responsável em caso de dolo ou culpa; 2) incauta manobra de motorista de transporte coletivo, que, atropelando ciclista em tráfego pela mesma via e em idêntico sentido, causa-lhe fratura exposta em membro superior esquerdo, obrigando-a a sujeitar-se a tratamento cirúrgico em hospital da rede pública de saúde estadual onde veio a óbito em virtude de septicemia, determina, em face de direta linha de causalidade entre o acidente e a morte da vítima, a responsabilidade civil objetiva da concessionária prestadora do serviço público de transporte coletivo pela composição dos danos materiais e morais sofridos pelos familiares da vítima, dever de reparação a ser solidariamente compartilhado com o ente estatal a cuja rede pública de saúde pertence a unidade hospitalar onde veio a vítima a falecer, em virtude de más condições de higiene ambiental; 3) a responsabilidade civil objetiva do Estado, em razão da morte da vítima, decorre da chamada culpa anônima, também conhecida por faute du service, mercê da qual todos e ao mesmo tempo não especificamente ninguém, incorrendo em culpa in omittendo, dão ensejo ao surgimento do evento danoso; 4) a pensão devida, por compensação a danos materiais, a filhos com capacidade civil decorrente da maioridade, decorre da presunção de dependência econômica destes em relação ao ascendente falecido; 5) nesses casos, se não comprovado o valor da renda auferida em vida pela vítima, devido será, aos filhos, pensão equivalente a 2/3 de um salário-mínimo, a ser percebida até que completem vinte e cinco (25) anos; 6) a compensação por dano moral deverá ser arbitrada em atenção aos princípios da razoabilidade e a proporcionalidade, em modo a não pecar por excesso nem por aviltamento; 7) recurso conhecido à unanimidade e, no mérito, negou provimento ao recurso da empresa apelante, vencido o relator apenas quanto ao valor arbitrado em compensação por danos morais, mantida, quanto ao mais, a sentença atacada no recurso de apelação, tudo nos termos dos votos proferidos. 
Inteiro Teor
RELATÓRIO


Adoto, como parte do relatório deste voto, os seguintes fragmentos da sentença apelada, lançada às fls. 134/142 dos autos:
(...) MARLEUZA CARDOSO DA SILVA, MARLEUMA CARDOSO DA SILVA e MARLONSON CARDOSO DA SILVA, todos qualificados na inicial, através de advogado particular, ajuizaram Ação de Indenização por Danos contra GARRA TRANSPORTES e SERVIÇOS LTDA, MUNICÍPIO DE SANTANA e ESTADO DO AMAPÁ, alegando, em síntese, que são filhos e únicos herdeiros de Maria José Cardoso da Silva, falecida em 04.06.2009, em consequência de lesões corporais sofridas em acidente de trânsito ocorrido nesta cidade em 25.05.2009, envolvendo a vítima que conduzia uma bicicleta e o ônibus da primeira ré; que uma das causas do acidente foi a condução imprudente do motorista da empresa Garra; que outra causa determinante do acidente foram as deformações no revestimento asfáltico da via pública que não estava em condições de receber tráfego de pessoas e de veículos, revelando a omissão do poder público municipal; que além disso a vítima foi internada no pronto socorro estadual em Macapá, onde veio a falecer em consequência de infecção disseminada, revelando a negligência do Estado, consistente na insuficiência de recursos empregados no tratamento dado à vítima.
Face ao exposto, requereram a condenação dos réus no pagamento de uma indenização por dano moral, no valor de 450 salários mínimos, e pelos danos materiais no pagamento de uma pensão mensal no valor de 2/3 do salário mínimo, até que a vítima completasse 70 anos, ou até que os autores completassem 25 anos de idade, bem como no ônus da sucumbência.
Com a inicial juntaram os documentos de fls. 12 a 30.
Em audiência de conciliação, esta restou infrutífera, ocasião em que os réus Estado do Amapá e empresa Garra apresentaram suas contestações por escrito.
O Estado do Amapá, ofereceu contestação às fls. 54/60, na qual argüiu a preliminar de inépcia da inicial, aduzindo que ela não está em conformidade com a lógica formal, já que a narração dos fatos não decorre logicamente a conclusão e também pelo fato de apresentar pedidos incompatíveis entre si, requerendo a extinção do feito sem a resolução do mérito. No mérito, sustentou que cabem ao Município e à empresa concessionária responderem pela morte da genitora dos autores, eis que está evidente que a causa mortis decorreu do choque entre a bicicleta e o ônibus da empresa Garra; que a responsabilidade do município é objetiva; que não foi a conduta do Estado que, por si só, produziu o resultado; que a morte sobreveio em razão do acidente, e não em consequência do atendimento médico prestado pelo Estado; que utilizou-se de todos os recursos da medicina no atendimento à vítima, mas que não foi possível salvá-la, dado aos graves ferimentos sofridos; que a atividade médica é uma obrigação de meio e não de resultado; que nada existe nos autos que prove a ocorrência do resultado por culpa exclusiva ou concorrente do Estado.
Ao final, requereu o acolhimento da preliminar suscitada e, alternativamente, a improcedência total do pedido.
A empresa Garra Transportes e Serviços Ltda, apresentou contestação às fls. 61/91, arguindo em preliminar a sua ilegitimidade passiva ad causam para compor a lide, sob o argumento de que não deu causa ao evento danoso. No mérito, em síntese, aduziu que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima, que em função das más condições da pista e ao tentar desviar da poça d'água, perdeu o equilíbrio e caiu com sua bicicleta; que o motorista, ao perceber que a vítima havia caído, imediatamente parou o veículo e prestou-lhe socorro; assevera que a perícia não foi conclusiva no sentido de apontar o veículo causador do acidente, não sendo razoável que tenha que indenizar pela ação indevida de terceiros; que a vítima faleceu em função de processo infeccioso disseminado, o que demonstra a negligência por parte do Estado; em seguida tece considerações a respeito da falta de documentos que comprovem o dano material, sobre o descabimento da pensão em favor dos autores, bem como da inexistência de comprovação do alegado lucro cessante; impugna o pedido excessivo de indenização por danos morais. Ao final, requer o acolhimento da preliminar, e no mérito o julgamento totalmente improcedente dos pedidos constantes na inicial.
Réplica pelos autores às fls. 95/97.
Despacho saneador, que tornou-se irrecorrido às fls. 99/100.
Em audiência de instrução, fls. 104/110, foram colhidos os depoimentos da autora Marleuza Cardoso da Silva e das testemunhas Mizael Aranha da Silva e Joel Dias Souza Filho.
Alegações finais pelos autores às fls. 11 a113.
Memorial pelo réu Estado do Amapá às fls. 114/119.
Alegações derradeiras pela ré Garra Transportes Ltda às fls. 122 a 128.
O município de Santana, revel, não se manifestou.
O RMP às fls. 130/133, entendeu que não havia necessidade da intervenção ministerial nos autos (...).


Acrescento que o ilustre magistrado singular que processou o feito, resolvendo o mérito da causa, deu pela procedência parcial do pedido deduzido na petição inicial da ação indenizatória proposta, para condenar, tão-somente, a empresa Garra Transportadora e Serviços Ltda., a pagar aos autores, a título de reparação de danos morais, o valor correspondente a noventa (90) salários mínimos, além de pensão mensal compensatória por danos materiais fixada em dois terços (2/3) do salário mínimo, reconhecendo, em relação a esta última parcela do pedido, a culpa concorrente da vítima, julgando, no mais, improcedentes os pedidos formulados em desfavor dos entes públicos Estado do Amapá e Município de Macapá.


Inconformados ao édito condenatório, interpuseram, tanto a ré-condenada quanto os autores, recurso de apelação, ao longo de cujas razões sustentaram, em ordem de arguição - primeiramente a empresa recorrente -, a reiteração das teses defensivas, consistentes no reconhecimento de culpa exclusiva da vítima, a ausência de conduta culposa da empresa a ensejar condenação à composição de danos morais, redução da verba condenatória, bem como ausência de prova de prejuízo ou diminuição de patrimônio em relação aos danos materiais (fls. 143/155). Os autores-apelantes, por outro lado, em suas razões perseguem o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado do Amapá e do Município de Macapá, pois o óbito da vítima adveio de conjugação de atos omissivos dos entes públicos, notadamente por responderem objetivamente na forma da legislação brasileira, motivo pelo qual pugna pelo acolhimento integral do pedido encartado na petição inicial (fls. 159/162).


Embora certificada regular intimação das partes para apresentarem contrarrazões (fls. 165), apenas a empresa Garra Transportadora e Serviços Ltda. rebateu os fundamentos recursais da parte ex adversa, requerendo, na essência, o desprovimento do recurso (fls. 166/177).


Ausente interesse público, a justificar a intervenção da digna Procuradoria de Justiça do Amapá, abstive-me de sua audiência, notadamente pela maioridade dos autores.


É o relatório.
ADMISSIBILIDADE
ADMISSIBILIDADE
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Também conheço.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Também conheço, Excelência.
MÉRITO


EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - O dever de reparação de dano, tanto material quanto moral, assenta na premissa de conduta ilícita do agente, que tenha causado, a outrem, prejuízo, nas sempre lembradas lições de José de Aguiar Dias, em sua famosa obra DA RESPONSABILIDADE CIVIL, Ed. Renovar, XI ed, ano 2009. Lá ensina o mestre que a responsabilidade civil tanto pode desenvolver-se sob modalidade objetiva, quanto subjetiva. Na primeira, o dever de reparação do dano decorre de simples comprovação do nexo causal entre a ação ou omissão do agente e o resultado danoso, enquanto que, na segunda, esse mesmo dever de reparação advém da comprovação da culpa aquiliana de que se tenha deixado impregnar a conduta do agente, tida por ilícita, da qual teria provindo o dano.


Na hipótese sub examine, embora o laudo de exame pericial do sítio de colisão do veículo automotor M. Benz Induscar AP, placa NER 5141, de propriedade da empresa Garra Transportadora e Serviços Ltda., com veículo de propulsão humana, espécie bicicleta (seqüência numérica 88610JJ), pertencente à vítima, tenha sido inconclusivo quanto à causa determinante do acidente, vez que os experts afirmaram, no item 5 do referido laudo, que (...) não foi possível determinar qual dos veículos foi gerador do acidente (...) (fl. 20), o magistrado singular identificou corretamente, por outros meios de prova, em especial o depoimento prestado pelo condutor do veículo Sr. MIZAEL ARANHA DA SILVA na delegacia de polícia, que a causa determinante do acidente foi o fato de o condutor do ônibus ter invadido o espaço em que trafegava a vítima com sua bicicleta, após manobra daquele ao ser ultrapassado por outro veículo.


Extraem-se, do depoimento do motorista/empregado da empresa, as seguintes afirmativas: (...) que, ao dar o retorno, avistou a vítima que trafegava em uma bicicleta pela mesma via, no mesmo sentido, (OESTE/LESTE); que, próximo a uma parada de ônibus avistou um veículo que ultrapassou o ônibus que conduzia; que, em razão da ultrapassagem desviou ao máximo do referido veículo; que, olhou pelo retrovisor direito para ver se a vítima havia parado, quando percebeu que a mesma havia caído; que, achou que a vítima havia se machucado e por isso parou o ônibus e foi averiguar se ela realmente havia se machucado; que, ao chegar perto constatou que a vítima havia sofrido fratura exposta no braço esquerdo; que, percebeu que a roda do ônibus havia passado por cima do braço da vítima; (...) (fl. 28), versão confirmada em juízo (fl. 109), apenas com ressalva de que o depoente não teria encostado no veículo que o ultrapassou.


Através do depoimento supratranscrito, verifica-se a responsabilidade objetiva da empresa de transporte coletivo que presta serviço público, uma vez que, em relação a condutor profissional de veículo de grande porte, é de esperar-se, no mínimo, prudência no desempenho de suas atividades, atitude pela qual, ao contrário, não se pautou o condutor do veículo de transporte coletivo, pois avistou a vítima e ainda assim desviou para o lado do biciclo que trafegava na lateral da pista, confiando no sistema de frenagem de seu veículo como providência capaz de evitar o choque entre ambos, malgrado ostentassem dimensão e massa férrea absurdamente incomparáveis.


Correta, portanto, a sentença ao afirmar que (...) Se o condutor do ônibus tivesse parado ou diminuído sua marcha, ao invés de efetuar a manobra adornando ao máximo seu veículo para a direita, o acidente poderia ter sido evitado. O motorista fez isso, sem, contudo, dar preferência à bicicleta que já tinha iniciado a sua passagem. Assim, agiu sem a observância do dever de cautela, conforme previsão dos artigos 28, 34, 36 e 58 do Código de Trânsito Brasileiro. (fl. 138).


Se por um lado a culpa do condutor do veículo coletivo restou sobejamente demonstrada, em inverso sentido não encontra ressonância probatória nos autos a tese de culpa exclusiva da vítima ou sua concorrência para o evento danoso, ainda mais porque a responsabilidade objetiva da empresa jamais dá lugar à mitigação de valor da composição indenizatória em face de reconhecimento de culpa exclusiva ou concorrente da vítima, a não ser quando não demonstrado e comprovado liame causal entre a ação ou omissão do preposto da permissionária de serviço de transporte coletivo e o evento danoso.


Se provado esse nexo de causalidade e caracterizada a responsabilidade objetiva, não cabe, por óbvio, admitir culpa exclusiva ou concorrente da vítima, pelo simples fato de que a responsabilidade objetiva, nesses casos, erige-se independentemente de averiguação de culpa.


Apesar de as testemunhas de defesa terem afirmado que a vítima, no momento do choque com o ônibus, manobrara para desviar de uma poça dágua, não resta evidenciada qualquer prova material de que tenha ela, por esse tipo de conversão realizada com sua bicicleta, se projetado ao centro da pista onde estavam a transitar os veículos maiores, contribuindo, desse modo, para o evento danoso.


Nem por isso, a sentença apelada acolheu, - penso que impropriamente, - a coexistência das responsabilidades objetiva e subjetiva, para redução do quantum indenizatório, ponto discutível da lide que não foi, porém, de forma direta e objetiva, senão em plano generalizado de postulação, atacado pelos autores-apelantes, o que, no entanto, não se transforma em questão pacificada pela adoção do princípio do tantum devolutum quantum apelatum, já que os autores, em seu recurso de apelação, se não combateram especificamente a insuficiência do valor arbitrado em compensação ao dano moral sofrido, fizeram-no, todavia, em contexto recursal devolutivo de maior abrangência, ao pleitearem o provimento de seu recurso, para o fim de, em reforma à sentença apelada, ser-lhes assegurado o recebimento das verbas indenizatórias requeridas na petição inicial da ação proposta.


Como visto, não restou configurado, como ao contrário se poderia imaginar, o óbice da inexistência de impugnação específica ao valor arbitrado em reparação civil do dano moral, advinda do princípio do tantum devolutum quantum apelatum. É que, repetindo o que foi dito a linhas atrás, o recurso de apelação dos autores, no que concerne a esse tópico de abordagem recursal, enfeixou, em pedido global de reforma da sentença como um todo, a revisão, − aí também incluso o arbitramento da indenização por danos morais - de todo o preceito condenatório firmado na sentença apelada. Aliás, seria até rematado contra-senso, ante impugnação generalizada ao édito condenatório, interditar o exame de seu merecimento, no quanto respeitante à justeza ou não das indenizações arbitradas em ressarcimento de danos materiais e morais sofridos, se estes últimos, ao serem mensurados, sofreram redução pela metade em face da aplicação mitigada das responsabilidades civil objetiva e subjetiva.


Afinal, sendo o direito processual de natureza instrumental e envolvendo a resolução do mérito de causa direito de índole material, impossível é, por alegada falta de específica impugnação à insuficiência do valor arbitrado a título de ressarcimento por danos morais, deixar de apreciar essa questão, para, já reconhecida que tenha sido a responsabilidade objetiva do permissionário, se possa, ainda assim, de maneira notoriamente incongruente, admitir concorrência de culpa da vítima, quando as responsabilidades objetiva e subjetiva, orbitando em torno de zonas próprias e distintas de determinação da responsabilidade civil, são, em essência, inconciliáveis.


Quanto à responsabilidade do Estado do Amapá, este também responde objetivamente, uma vez que a vítima de trânsito esteve sob cuidados médicos e faleceu no Hospital de Emergências - não exclusivamente por causa dos ferimentos decorrentes do acidente de trânsito -, mas em conseqüência de processo infeccioso disseminado (septicemia) que evoluiu em decorrência de cavidade abdominal (peritonite) (fl 27). Observa-se, nesse aspecto, que, apesar de o óbito da vítima haver decorrido de infecção generalizada como causa comumente associada às más condições insalubres e anti-higiênicas do ambiente hospitalar, sua internação se verificou em razão de traumatismo sofrido no braço esquerdo, fruto do atropelamento de que foi vítima.


Ao contrário do afirmado pelo juízo sentenciante, não há, nessas hipóteses, como cogitar de culpa deste ou daquele profissional de medicina que tenha prestado assistência ao paciente, pois o § 6º do art. 37 da CF/88 consagrou o princípio da responsabilidade objetiva do ente estatal pela reparação dos danos que seus agentes, nessa condição, tenham causado, por ação ou omissão, a outrem, bastando, para isso, que comprovado fique o nexo causal entre a conduta omissiva ou comissiva do agente e o resultado danoso, o que, no caso concreto, restou comprovado.


Em relação à responsabilidade objetiva estatal, têm a doutrina e a jurisprudência aceito, quando a morte da vítima decorre de infestação infecciosa em ambiente hospitalar, como fenômeno a evidenciar culpa in omittendo de todos e ao mesmo tempo não especificamente de ninguém, - tal qual ocorreu no presente caso, - a aplicação da moderna teoria da culpa anônima, também conhecida como teoria do faute du service, em que a responsabilidade civil pela reparação de dano se impõe objetivamente.


Assim, a dinâmica factual permite reconhecer, ao contrário do que sustenta e quer fazer crer a empresa apelante, a responsabilidade objetiva e solidária da empresa Garra Transportadora e Serviços Ltda e do Estado do Amapá, já que, mediante condutas positivas ou negativas (ação ou omissão) de seus agentes, atraíram a aplicação da teoria do risco administrativo em razão do desempenho de suas atividades.


Malgrado infeliz a sentença apelada em afastar a responsabilidade solidaria do Estado do Amapá e condenar apenas a ré-apelante, − empresa Garra, − acertou, no entanto, ao dar pela irresponsabilidade civil do ente municipal, patente como ficou a inexistência de nexo de causalidade entre a invocada omissão da administração do município na conservação da via pública e sua contribuição para o acidente ou morte da vítima, fato que, como se viu, se deveu à imprudência do motorista da permissionária de transporte coletivo apelante e à infecção hospitalar contraída no hospital de emergência, tanto uma quanto outra causa com efeito eficiente e bastante à ocorrência do evento danoso.


Por fim, relativamente ao quantum das verbas condenatórias, os valores fixados - noventa salários mínimos por danos morais e pensão de 2/3 do salário mínimo devida até que o último dos autores completasse 25 anos -, foram objeto de ataque no recurso de apelação aviado pelos autores não de forma pontual e direta, mas englobadamente com o de revisão do montante atribuído em ressarcimento aos danos materiais e morais, ao pugnar, de maneira generalizada, pelo provimento do recurso com a conseqüente procedência da ação, em conformidade com os pedidos formulados na inicial.


Já a ré-apelante, em sentido inverso, pôs, no seu recurso de apelação, empenho no sentido da redução dos valores arbitrados a título de indenização por danos materiais e morais, por não ter havido, como parâmetro para fixação dos primeiros, comprovação de renda da vítima e, em relação aos últimos, por entender terem sido abusivos, desproporcionais, contrários aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.


O parâmetro para aquilatar o quantum devido a título de danos morais, segundo o entendimento doutrinário, há de levar em conta a condição sócio-econômica da vítima, a capacidade econômica do ofensor, a natureza e extensão do dano, o grau de culpa com que agiu o agente causador do dano, além da graduação do valor indenizatório em modo a imprimir-lhe caráter inibitório à repetição de idêntico fato, nunca podendo ir, no entanto, além do quantum estritamente necessário a compensação do dano e de maneira a não favorecer enriquecimento sem causa, como ditam expressivos julgados de nossos Tribunais Superiores.
In casu, a vítima era autônoma, sem comprovação nos autos de rendimentos, ao contrário da empresa apelante que explora serviço de transporte público e o Estado do Amapá que possui fontes de receitas distintas. No mais, os filhos, em situações de morte dos pais, sofrem presumível dano moral elevado, motivo pelo qual o julgador singular adotou por parâmetro, equivocadamente diga-se de passagem, uma espécie de conjugação das responsabilidades civil objetiva e subjetiva, - ao aplicar a primeira e mitigar o valor da indenização em razão de culpa concorrente, - compensação por dano moral em valor bem inferior aos paradigmas ditados pela Escola Judicial, fixando-a em 90 salários mínimos, montante que, diversamente do que sustentou a ré-apelante, não se mostra excessivo nem desproporcional, ao contrário ínfimo a ponto de não expressar justa reparação ao dano moral sofrido.


Em razão disso, levando em conta que o valor do dano moral deve, sob os prismas da razoabilidade e da proporcionalidade, representar o quantum suficiente à justa reparação do dano sofrido, sem dar ensanchas a enriquecimento sem causa, entendo por bem elevar o valor do dano moral a montante correspondente a duzentos e cinquenta (250) salários-mínimos, valor que se põe em linha condizente com inúmeros precedentes firmados a propósito pelo Egrégio STJ, que, em situações análogas, adota como parâmetro a fixação do quantum, guardadas as peculiaridades de cada caso concreto, entre 100 e 500 salários-mínimos (REsp 860705/DF, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª.T., DJ 16/11/2006; REsp 932001/AM, Rel. Ministro Castro Meira, 2.T., DJ 11/09/2007).


Quanto aos danos materiais, a sentença deferiu o pagamento de pensão pela dependência econômica dos filhos em relação à sua genitora. Embora na data do evento danoso (25/05/2009) os autores já estivessem aptos ao exercício pleno da capacidade civil pela maioridade (Marlonson - 18 anos, Marleuma - 19, e Marleuza, - 21 anos), a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça admite o pagamento de pensão aos filhos adultos jovens menores de 25 anos com base na presunção de dependência econômica destes em relação ao ascendente falecido (REsp 970.640-MG, 3ª T., Relª. Minª. Nancy Andrigh, DJE 30.06.2010; REsp 402.443-MG, 3Tº, rel.p/acórdão Min. Castro Filho, DJ 01.03.2004), motivo pelo qual a sentença, nessa parte, também merece prestígio ao impor limite ao cálculo da pensão devida até a idade de 25 anos sem exigir a comprovação de dependência.


Por essas razões, dou provimento ao recurso de apelação dos apelantes-autores para condenar solidariamente a ré-apelante e o Estado do Amapá ao pagamento de indenização por compensação a danos morais no montante de duzentos e cinquenta (250) salários-mínimos, mantendo, quanto ao mais, a sentença apelada.


Em conseqüência, nego provimento ao recurso de apelação aviado pela empresa-apelante.


É como voto.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Como ficou o dano material, Excelência?
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Dois terços. Precedente da Casa já.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Eu ouviu o voto e nós tivemos uma discussão muito grande aqui. Eu não sei o tamanho dessa empresa Garra. Eu lembro que julgando um processo de Santana de uma empresa de que realmente, pelos indicadores nós devíamos dar o máximo e concluímos que não adiantava dar, porque ela ia quebrar e não ia pagar, nem ela e nem ninguém e o Desembargador Edinardo, conhecendo a empresa, o que nós fizemos, baixamos ao nível que a empresa pudesse pagar, mesmo sabendo que o direito era aquele ali, mas que existe uma realidade e, essa realidade nós tínhamos que levar em conta.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Senhor Presidente, Vossa Excelência me permite. Lembro-lhe que estou reconhecendo responsabilidade solidária da permissionária do serviço público que contribuiu para o acidente, causando traumatismo no braço esquerdo, que não foi a razão da morte da vítima e do Estado do Amapá, porque, internada em nosocômio público estadual para submissão a tratamento cirúrgico do trauma no braço esquerdo, a vítima veio a falecer em virtude de infecção hospitalar. Por essa razão, além da compensação a danos materiais à razão de 2/3 do valor do salário-mínimo, estou arbitrando, em consonância com jurisprudência do Egrégio STJ e segundo patamares preconizados pela Escola Judicial do Amapá, indenização por danos morais no equivalente à média entre cem e quinhentos salários mínimos, isto é, duzentos e cinquenta salários-mínimos.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Quando aconteceu o fato?
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - O fato aconteceu em 2009.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Vai a correção monetária, vai juros. Isso vai lá pra cima. Os dois terços, nós temos colocado meio salário. O meu voto, eu entendo que eu baixaria para, é solidário, metade para o Estado, metade para...
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - É solidário. Ele elege um.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Ele vai eleger a empresa porque recebe mais rápido, é evidente que ele não vai eleger o Estado...
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Pelo contrário, o Estado que é mais seguro.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Vai demorar o Estado.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Bem, eu baixaria para cento e cinquenta salários mínimos, levando em conta a correção monetária e baixaria para meio salário. É o meu voto. Desembargador Edinardo?
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Vossa Excelência deveria levar em conta que são três dependentes que estarão compartilhando o crédito correspondente ao somatório dos valores arbitrados a título de compensação por danos materiais e por danos morais.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Eu acompanho Vossa Excelência. Eu tenho uma posição frontalmente contrária essa indenização de danos morais pela morte de alguém, eu não vejo, a minha análise, eu respeito àqueles que pensam diferente, é buscar dinheiro se utilizando de um ente próximo que faleceu, porque o dinheiro não paga nada, não paga a dor, não paga a perda, apenas traz uma compensação financeira que alguém que sobreviva vai usufruir. Sou totalmente contra. A jurisprudência toda permite, chega a valores, para mim, estratosféricos. Eu sou totalmente contra.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Alicerçado que está na doutrina e na jurisprudência, mantenho meu voto.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Nós não estamos olhando isso, Desembargador, estamos olhando a realidade...
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Senhor Presidente, está meu voto fundamentado em doutrina e jurisprudência, adotando valores de acordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Mantenho-o, pois.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - O seu voto está irretocável apenas o detalhe é esse...
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Estou fazendo intervenção em amor ao direito onde sempre prepondera a dialética. Não estou dizendo que meu voto está certo, que deva prevalecer. Saio vencido tranquilamente.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Não, eu estou olhando o aspecto...
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Meu voto será integralmente mantido, ainda que vencido.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Vossa Excelência deve manter sim, eu acho que deve manter, apenas eu justifiquei porque eu fiz isso, lembra Desembargador Edinardo. Gente, cheguei à conclusão e a empresa pagou. Então, Desembargador Brahuna, Vossa Excelência fica vencido nessa parte. Fica cento e cinquenta salários-mínimos à guisa de reparação de danos morais e meio salário-mínimo para efeito de compensação aos danos materiais sofridos pelos familiares da vítima.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador CONSTANTINO BRAHUNA (Relator) - Excelência, são três autores. Divida isso por três, não vai dar nada para ninguém.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Apenas vamos discordar de Vossa Excelência apenas no valor, cento e cinquenta salários-mínimos em compensação aos danos morais e meio salário-mínimo aos danos materiais.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Não sei se o precedente nosso é de dois terço.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador LUIZ CARLOS (Revisor) - Tem meio, dois terço, dois terço e meio. Vamos deixar, então, os dois terços.
O Excelentíssimo Senhor Desembargador EDINARDO SOUZA (Vogal) - Eu vou acompanhar...eu sou totalmente contra.
DECISÃO


A Câmara Única do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, por unanimidade, conheceu dos recursos e, no mérito, por maioria, deu provimento parcial ao recurso dos apelantes/autores, vencido o Relator apenas no tocante à fixação do montante do dano moral e, à unanimidade, negou provimento ao recurso da empresa apelante, mantida a sentença quanto ao mais, tudo nos termos dos votos proferidos.

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